📬 O desconforto de comandar
Você não está exagerando. Não é arrogante. Nem está fora do lugar. Esta edição é um convite para reconhecer (e sustentar) o seu espaço de liderança com toda a potência que ele exige.
Você já se sentiu desconfortável ao assumir uma posição de liderança, como se estivesse invadindo um espaço que não foi feito para você? Já se pegou diminuindo suas conquistas, evitando se impor ou usando um tom excessivamente modesto para “compensar” sua autoridade?
Por muito tempo, eu me senti assim. Lembro de ocasiões em que, mesmo ocupando formalmente um cargo de liderança, era como se eu “fingisse” não ocupar esse lugar. Quando alguém me chamava de "chefe" ou dizia algo como “quem decide é você”, especialmente diante de um impasse, eu me sentia quase encabulada, como se fosse preciso responder um “imagina”, como quem recua um passo para não parecer autoritária.
Foi com o tempo (e com certa insistência da realidade) que entendi: sim, aquele era o meu cargo. E ele não era apenas um título, era o reconhecimento de uma trajetória, um símbolo de confiança da empresa, das minhas lideranças e do meu time. Era também uma função que exigia de mim presença, clareza e, sim, decisões. E não havia nada de errado - nem de exagerado - em ocupar esse espaço com firmeza.
Esse sentimento de inadequação, que muitas vezes é confundido com humildade, pode ser, na verdade, o resultado de algo mais profundo: o impacto de uma cultura que, por séculos, ensinou as mulheres a não ocupar o centro. A não incomodar. A não parecer mandonas. A não ser “demais”.
1. A modéstia como armadura
Durante muito tempo, a modéstia foi vista (e celebrada) como uma virtude essencial, especialmente para mulheres. E claro, ser humilde, reconhecer o esforço coletivo e ter empatia são valores importantes. Mas, quando falamos de liderança, existe um ponto de desequilíbrio que pode custar caro: o excesso de modéstia. Em cargos de comando, ele muitas vezes funciona como uma armadura invisível, uma espécie de mecanismo de defesa emocional para não parecer arrogante, autoritária, ou simplesmente… demais.
No início da minha trajetória como líder, percebia em mim um padrão curioso: quando recebia um elogio por uma conquista minha, a primeira reação era apontar que “foi o time todo que fez acontecer”. Ou quando precisava tomar uma decisão impopular, sentia quase como se estivesse fazendo algo errado e tentava “compensar” com um tom suave, hesitante. Era como se eu estivesse, de alguma forma, pedindo desculpas por exercer minha autoridade.
Esse tipo de comportamento não é aleatório. Um estudo da Harvard Business School (2013) revelou que mulheres, em média, tendem a atribuir seu sucesso a fatores externos como sorte, ajuda do time ou circunstâncias favoráveis, enquanto homens geralmente se colocam como agentes protagonistas de seus próprios resultados. Isso não acontece por acaso: é reflexo de uma educação que nos ensinou que ser mulher é ser agradável, discreta e “modesta”.
Mas há um custo nesse apagamento sutil.
A modéstia desproporcional dificulta a construção de autoridade. Torna nossa presença menos marcante. E, em um ambiente corporativo competitivo, onde visibilidade, clareza e posicionamento são essenciais, isso pode impactar diretamente no reconhecimento do nosso trabalho e no alcance da nossa influência.
Em Guia da Garota Confiante, um livro para adolescentes, Katty Kay e Claire Shipman utilizam pesquisa e ciência para explorar esse dilema com profundidade. Elas mostram como mulheres altamente capacitadas ainda hesitam em se afirmar, mesmo quando têm dados e resultados ao seu lado. Segundo as autoras, essa hesitação não tem a ver com falta de capacidade, mas sim com a forma como fomos treinadas a pensar sobre competência. Em muitos contextos, a confiança em excesso é vista como um ativo para os homens, mas como um risco de rejeição social para as mulheres.
E o que acontece, então? A modéstia vira um escudo. Evitamos falar dos nossos feitos, suavizamos nossa voz, minimizamos nossa autoridade. Pensamos que o que entregamos “não é mais que nossa obrigação”e, por isso mesmo, não verbalizamos ou celebramos. Mas isso não nos protege - nos silencia.
Reconhecer esse padrão é o primeiro passo. O segundo é entender que ocupar um cargo de liderança exige não apenas responsabilidade, mas também presença. Uma presença que não precisa ser agressiva, mas que precisa ser sentida. Que não precisa gritar, mas que precisa se afirmar.
E tudo bem se isso for desconfortável no começo. Afinal, estamos reprogramando anos (ou séculos) de condicionamento. Mas cada vez que uma mulher assume o próprio valor sem pedir desculpas por isso, ela abre espaço para que outras façam o mesmo.
2. O condicionamento invisível: raízes culturais e sociais
Se a modéstia excessiva funciona como uma armadura, ela não surgiu do nada. Existe uma engrenagem inteira — social, histórica e simbólica — que nos ensinou, desde muito cedo, a não ocupar espaço demais, a agradar, a não incomodar, a falar com cuidado, a pedir licença para existir.
É um condicionamento tão sutil que às vezes nem percebemos. Na ficção, por exemplo, as líderes são sempre vilãs. Os conselhos bem-intencionados que dizem “baixa um pouco a bola” ou “ninguém gosta de mulher mandona”. Está até na forma como meninas são elogiadas por serem comportadas e delicadas, enquanto os meninos são celebrados por serem ousados e criativos.
Esse desequilíbrio se reflete desde a infância. Um estudo publicado na revista Science (2017) revelou que, a partir dos 6 anos, meninas já começam a se considerar menos brilhantes que os meninos, mesmo tendo desempenho igual ou superior em testes. Aos poucos, essa autopercepção vai moldando comportamentos: elas se arriscam menos, questionam mais a própria capacidade e, quando crescem, muitas não se sentem confortáveis na posição de liderança.
A tal “síndrome da impostora” (sobre a qual falamos na sétima edição desta news), nasce exatamente aí: não da falta de preparo, mas da ausência de permissão simbólica para ocupar o centro. É como se tivéssemos que provar o tempo todo que merecemos estar onde estamos. E isso cansa. Cansa emocionalmente, e cansa também a nossa ambição, porque não é fácil continuar crescendo quando, lá no fundo, você sente que está forçando a entrada num lugar onde não deveria estar.
Essa tensão fica ainda mais evidente quando olhamos para os atributos tradicionalmente associados à liderança: firmeza, tomada de decisão rápida, assertividade, autoconfiança. Todos eles, culturalmente, são vistos como traços masculinos. Então, quando uma mulher exerce essas qualidades, muitas vezes enfrenta um julgamento duplo: ou é “fraca demais para o cargo” ou “dura demais para ser agradável”. As caixinhas que abro no Instagram perguntando sobre qual a maior dificuldade das mulheres em posição de liderança são provas de que esse ponto é absolutamente doloroso.
Rebecca Solnit, em Os Homens Explicam Tudo Para Mim, descreve com precisão esse cenário de invalidação simbólica constante, desde o mansplaining (quando um homem explica algo a uma mulher ou ao grupo para o qual ela se apresenta, presumindo que ela sabe menos, mesmo que ela seja especialista no assunto) até a tendência de desconsiderar vozes femininas em decisões estratégicas.
Mas precisamos começar a reconhecer que muitas das nossas dúvidas não vêm de dentro, mas, sim, de fora. E mais: duvidar de si mesma não é um sinal de incompetência, mas de um sistema que ainda não foi construído para nos abraçar no topo. Quando entendemos isso, ganhamos um pouco mais de liberdade para decidir o que, de fato, é nosso jeito de liderar e o que foi aprendido apenas para agradar?
3. Gatilhos que despertam o desconforto de liderar
Nem sempre o desconforto de liderar se manifesta de forma clara. Muitas vezes, ele aparece em momentos pontuais, em situações aparentemente simples, mas que nos desestabilizam por dentro. São pequenos estalos emocionais que ativam reações que podem nos prejudicar.
Para muitas mulheres, certos momentos funcionam como espelhos: expõem nossas inseguranças e acionam padrões inconscientes de autoproteção. É fundamental que a gente consiga mapear o que é que nos tira dos trilhos para que, com o tempo, não permitamos mais nos comportarmos como não desejamos. Entre os gatilhos mais frequentes, estão:
Ter que demitir alguém ou dar um feedback duro: o medo de parecer insensível pode nos fazer adiar conversas que, na verdade, são necessárias para o desenvolvimento do time.
Ser a única mulher em uma reunião estratégica: a sensação de não pertencimento se intensifica, e qualquer comentário pode parecer arriscado demais.
Receber um elogio em público: ao invés de aceitar com segurança, vem o impulso automático de se justificar ou dividir o crédito (mesmo quando o reconhecimento é pessoal).
Comparar-se com líderes homens que falam com mais firmeza: e pensar: será que estou sendo muito branda? Ou, se imito o tom deles, será que me acham agressiva?
Esses momentos não são apenas situações, eles são janelas para dentro das nossas crenças. Brené Brown, no livro que cito aqui uma news sim e outra também A Coragem de Ser Imperfeito, fala sobre como a vulnerabilidade não é fraqueza, mas sim a chave da autenticidade. Reconhecer o que sentimos diante desses gatilhos é o primeiro passo para desarmá-los. Uma boa prática é fazer uma pausa e se perguntar, com honestidade:
Por que essa situação me incomoda? Que crença está por trás dessa reação?
Talvez seja o medo de parecer dura demais. Ou a crença de que uma boa líder é sempre acolhedora. Ou, ainda, a ideia de que, para ser admirada, você precisa ser querida o tempo todo. A partir dessa consciência, é possível reescrever esses sentimentos.
4. O preço do apagamento involuntário
Em algum momento da jornada, a modéstia deixa de ser apenas um traço de personalidade e passa a custar caro: em influência, reputação, oportunidades desperdiçadas... Porque existe um preço silencioso quando uma mulher, mesmo estando em posição de liderança, hesita em se posicionar com clareza ou se retira do lugar de comando.
É um apagamento involuntário. Não acontece de propósito, ninguém decide conscientemente “liderar pela metade”. Mas, quando o desconforto de exercer autoridade se mistura com a vontade de ser aceita, o resultado é esse: uma liderança opaca, que não se sustenta e não transmite segurança ao time.
Isso pode se manifestar de várias formas:
Decisões importantes são adiadas ou transferidas para outras pessoas, para evitar desagradar ou se comprometer com o desconforto do conflito.
O time sente falta de direção clara, porque a líder prefere sugerir do que afirmar, ou evita dar feedbacks incisivos por medo de ser vista como dura.
A reputação se fragiliza, mesmo quando o trabalho é bem feito, porque autoridade, para ser reconhecida, precisa ser visível.
E isso tem consequências reais. Segundo o relatório Women in the Workplace 2023 (McKinsey & LeanIn.Org), embora as mulheres representem quase metade da força de trabalho em cargos de entrada, apenas 1 em cada 4 posições de liderança executiva é ocupada por mulheres. Mais grave ainda: muitas relataram que não foram incentivadas a assumir esses cargos e, em vários casos, não se sentiam prontas, mesmo tendo capacidade técnica equivalente ou superior à de colegas homens.
Esse dado não aponta apenas uma falha das empresas. Ele revela como o apagamento simbólico pode se tornar um entrave real na carreira de muitas mulheres.
5. Caminhos para fortalecer a autoestima de liderança
Reconhecer o desconforto de liderar já é um ato de coragem. Mas sair dele exige intenção, consistência e um recomeço no modo como nos enxergamos enquanto líderes.
Ao contrário do que muitas vezes parece, a autoestima profissional não nasce com a gente. Ela é construída. Não é sobre “acreditar em você” num passe de mágica, é sobre treinar esse músculo interno que sustenta sua presença, mesmo quando as dúvidas batem à porta.
Alguns passos podem ajudar nesse fortalecimento:
Crie um “diário de conquistas” (diário é um nome bonito, mas entendo que quinzenal seja mais que suficiente rs)
Parece simples, mas tem um poder enorme. Escreva, com regularidade, o que você realizou, metas batidas, conflitos resolvidos, elogios recebidos, ideias suas que geraram impacto. Esse registro serve como um lembrete concreto de que você age como uma líder, mesmo nos dias em que não se sente assim.Pratique afirmações de autoridade em voz alta.
Diga: “Eu lidero com competência. Eu sou capaz de tomar decisões difíceis. Eu não preciso me desculpar por exercer meu papel.” Pode parecer constrangedor no início, mas isso ressignifica sua narrativa interna e isso muda tudo. Em Grey 's Anatomy, a neurocirurgiã Amelia, ficava em posição de super-heroína antes de realizar uma cirurgia delicada e jurava que ajudava a encontrar a confiança. Eu acredito!Trabalhe sua presença com pequenos gestos.
Postura ereta, olhar direto, silêncio confortável antes de responder. Você não precisa “performar” autoridade, mas sustentar a sua. A segurança externa nasce da firmeza interna e isso se constrói nos detalhes.Cerque-se de outras mulheres que também estão nesse caminho.
Mentoras, colegas, comunidades. A liderança não precisa ser solitária. Ter com quem dividir angústias, vitórias e dilemas ajuda a tirar o peso do “eu deveria saber lidar com tudo sozinha”. O Liderama está aqui!
Um livro que sempre me acompanha nessa jornada é Mulheres que Correm com os Lobos, de Clarissa Pinkola Estés. Apesar de não ser sobre carreira, ele toca num ponto essencial: a força da mulher que resgata sua natureza instintiva, aquela que sabe que pode, que merece, que não precisa pedir permissão para existir por inteiro.
No fim das contas, fortalecer a autoestima de liderança é reaprender a habitar seu lugar. É deixar de se desculpar por estar à frente. É lembrar que não há nada de errado em ser “a chefe” e que liderar com firmeza e empatia é não só possível, mas necessário.
Com amor,
Andresa 🍀
"É como se tivéssemos que provar o tempo todo que merecemos estar onde estamos. E isso cansa. Cansa emocionalmente, e cansa também a nossa ambição, porque não é fácil continuar crescendo quando, lá no fundo, você sente que está forçando a entrada num lugar onde não deveria estar." -- Isso aqui foi certeiro!